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Apoie agoraMaria Vitória Ramos
Como a Lei de Acesso à Informação se tornou a grande aliada dos jornalistas na apuração de histórias que muitos preferiam que jamais fossem publicadas
Aos 12 anos, Gabriel Langkamer tinha sua vida nas mãos das Forças Armadas. Em Brasília, onde estava internado, o menino aguardava por um coração. Em meio às preocupações, uma boa notícia: havia um órgão em Minas Gerais. Todas as condições eram favoráveis ao transplante. Mas a Força Aérea Brasileira (FAB) se recusou a buscar o órgão saudável e Gabriel morreu 14 dias depois. Repórter do jornal O Globo, Vinicius Sassine acompanhava o caso e, respaldado pelo editor, foi mais fundo na investigação. Durante a apuração, o repórter havia escutado que a história de Gabriel não era isolada. Entretanto, os detalhes dos outros casos e os dados das recusas de transporte de órgãos pela FAB estavam sob sigilo. Nesse momento, a Lei de Acesso à Informação (LAI) foi um salvo-conduto no campo de batalha da transparência entre governo e sociedade. [caption id="attachment_10424" align="aligncenter" width="787"] Com a série de reportagens, o jornalista Vinicius Sassine ganhou o prêmio Rei da Espanha, o Prêmio Roche de Jornalismo em Saúde e influenciou um decreto que continua a salvar vidas até hoje. Foto: Angel Diaz/Agência EFE Com o pedido da LAI, Vinícius cruzou as informações dos órgãos recusados com as das viagens feitas por parlamentares e magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF) — dados já públicos graças à mesma lei. Descobriu o furo jornalístico. Entre 2013 e 2015, a cada cinco autoridades transportadas de carona pela FAB, um órgão fora desperdiçado. No dia seguinte à publicação da reportagem, o presidente Michel Temer, então interino, editou um decreto obrigando a FAB a disponibilizar uma aeronave exclusiva para o transporte de órgãos. O assunto se estenderia ainda pela série especial Saúde em Segundo Plano, que acabou vencendo em maio o Prêmio Rei da Espanha de Jornalismo na categoria Imprensa. O jornalista Fernando Rodrigues, diretor de redação do site Poder 360 e responsável pela publicação do Panama Papers no Brasil, foi um dos que batalharam pela importação do conceito legal de transparência dos Estados Unidos. Por muito tempo correspondente internacional da Folha de S. Paulo, Rodrigues trabalhava de perto com a Lei de Acesso americana e percebeu seu valor para a sociedade e para a democracia. Em 2003, junto da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Transparência Brasil, Artigo 19 e outras entidades, conseguiu criar o Fórum de Direito ao Acesso a Informações Públicas para pressionar a fundamentação e aprovação de uma lei de acesso nacional. A cada dia, mais jornalistas se apropriam da LAI nas apurações e como fonte inesgotável de matérias. Entre maio de 2012, quando a Lei 12.527/2012 foi sancionada por Dilma Rousseff, e abril de 2017, já foram realizados mais de 158 mil pedidos. “Desde a Constituição de 1988, você pode fazer qualquer questionamento ao governo. O problema é que, sem a LAI, não existia uma forma de obrigar o governo a cumprir prazos e a própria lei”, explica o jornalista Léo Arcoverde. Em 2015, ele largou seu emprego na Folha de S. Paulo para lançar o site Fiquem Sabendo, cuja proposta é produzir uma reportagem por dia usando dados obtidos por meio da lei de acesso. [caption id="attachment_10422" align="aligncenter" width="687"] O jornalista Léo Arcoverde, fundador e editor-chefe do Fiquem Sabendo já fez mais de 1.000 pedidos usando a Lei de Acesso à Informação. Enquanto ainda era repórter da Folha, Arcoverde acompanhou a crise hídrica que atingiu São Paulo durante 2014 e 2015. Ele suspeitava que o Estado passava por uma grave crise de escassez de água e, em parte, era causada por decisões tomadas pelo governo de Geraldo Alckmin, que negava sistematicamente as acusações. Todo mundo sabia, mas ninguém tinha como confirmar. Arcoverde fez o pedido, esperou os dados “amadurecerem” e publicou uma reportagem simples: uma tabela com os dez bairros com mais casos de falta d’água. “O pessoal pirou porque ninguém tinha os dados e de repente tinha por bairro”, conta. Com a insistência, o jornalista quebrou a “barreira da lentidão”. Fazendo pedidos diários, até pelo celular no metrô, já conseguiu material para mais de 480 reportagens. Por meio de histórias curtas e frequentes, ele expõe dados que posteriormente podem ser retrabalhados por outros comunicadores. “Acredito muito mais em fazer uma plataforma de transparência do que uma agência de notícias para competir com outros veículos”, explica Arcoverde. Por isso, cede parte das respostas recebidas para o Achados e Pedidos, iniciativa da ONG Transparência Brasil e da Abraji, que reúne milhares de pedidos e respostas obtidas via LAI. Em certas ocasiões, foi necessário que os jornalistas denunciassem a falta de transparência dos governantes em relação a informações que deveriam ser disponibilizadas ativamente, independente de quaisquer requisições públicas. Um exemplo são os dados sobre as mortes de presos em São Paulo. Arcoverde prestou atenção no rodapé do Levantamento de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2015 e observou que não constavam os dados do Rio e de São Paulo porque os próprios Estados não os forneceram. Em um e-mail, colocou em pauta a equidade entre poderes e questionou como o Estado não respeitava nem o Ministério da Justiça, autor do estudo. “O governo do Estado mudou a postura. Questionar a transparência dos caras dá certo”, atesta Arcoverde. Em sua reportagem mais emblemática usando a LAI, o repórter da Folha de S. Paulo Artur Rodrigues valeu-se da mesma estratégia. Ele havia pedido os dados de produtividade do monotrilho da linha prata para uma reportagem sobre sua ineficiência, mas o pedido foi recusado. A justificativa: os dados eram “ultrassecretos”. Descobriu então que o governo estava tentando driblar a LAI se apropriando indevidamente do artigo 23 da lei, que prevê o sigilo sobre informações que coloquem em risco a soberania nacional ou a privacidade de cidadãos comuns. Não apenas aquele documento, mas centenas de outros estavam escondidos: “Eles esconderam até a filmagem da banca do guarda no Metrô”, revela Rodrigues. Isto é, a não-resposta também rende matéria. “Às vezes, é pior para eles não responderem. E aqui no jornal a cultura é sempre fazer matéria explicitando a violação da lei”, garante. O governo Alckmin passou a ser acusado por falta de transparência por todos os lados e o desgaste gerado levou à abertura das informações. [caption id="attachment_10421" align="aligncenter" width="970"] “O PDF é o inimigo número um da LAI”, comenta Artur Rodrigues, explicando que o formato não permite o processamento dos dados em uma planilha universal. Foto: Gabriel Cabral/FOLHAPRESS Negar um pedido não é a única forma que as autoridades utilizam para manter a informação distante da sociedade. O governo muita vezes não responde o que foi de fato requisitado, responde de forma parcial, ou ainda fornece os dados de forma a dificultar sua organização. “O PDF é o inimigo número um da LAI”, comenta Artur Rodrigues, explicando que o formato não permite o processamento dos dados em uma planilha universal. Além de responder pedidos, as instituições sujeitas à LAI devem fornecer um rol de informações de forma espontânea, sem que seja preciso fazer um pedido de informação”, como consta no Guia Prático da Lei de Acesso à Informação, publicado pelo Artigo 19. Por ser nova e exigir conhecimentos mais sofisticados de manipulação de dados, a LAI pode ser um diferencial para novos jornalistas darem o pontapé que precisavam. Foi o que aconteceu com Luiz Fernando Toledo, repórter do Estadão. A partir da conversa com um amigo surgiu uma curiosidade e ele fez o pedido à Polícia Federal: “Quais foram as drogas apreendidas nos últimos três anos e que nunca tinham sido pegas antes?” Com os dados obtidos o jovem emplacou duas capas seguidas no jornal mais tradicional de São Paulo. “É interessante ver que um repórter sem muita experiência, que nunca cobriu o assunto, pode conseguir grandes reportagens via LAI sem grandes contatos na Polícia Federal, nem nada”, comemora. [caption id="attachment_10423" align="aligncenter" width="960"] Usando dados que conseguiu usando a Lei de Acesso, o jovem jornalista Luiz Fernando Toledo emplacou duas capas seguidas no jornal Estadão. A exclusividade das informações obtidas pela Lei de Acesso é outro atrativo para os profissionais. Todos os repórteres entrevistados para esta reportagem afirmaram trabalhar apenas com dados colhidos por eles mesmos. Como as respostas são enviadas apenas para o autor do pedido, os jornalistas podem esperar o tempo necessário para construir as histórias da maneira como preferirem. No caso de Leo Arcoverde, os primeiros dados indicando a crise na Sabesp já estavam em suas mãos três meses antes da publicação da matéria inaugural. Mas ao esperar, pode compilar mais dados e constatar uma tendência valendo-se de fatos. A LAI tem se mostrado especialmente útil para quantificar algumas questões que povoam o senso comum, mas que carecem de comprovação. Exemplo disso é a matéria “SP dá a professores 372 licenças por dia; 27% por transtorno mental”, escrita por Luiz Fernando. “Todo mundo sabe que existe professor doente e muitas faltas, mas eu nunca vi isso ser quantificado”, explica. Na tentativa de persuadi-lo a abandonar a história, a assessoria de imprensa da Secretaria de Educação tentou lhe vender uma pauta sobre atestados falsos. Ele ignorou e obteve o que precisava independentemente dos assessores, via Lei de Acesso. Um ponto que prejudica a transparência de dados entre governo e sociedade é a mediação da assessoria de imprensa. “Essas informações sempre foram tratadas como moeda de troca com jornalistas; para agradar aquele que faz uma matéria mais favorável, o assessor passa um dado exclusivo”, explicita Artur Rodrigues. Afinal, o assessor está ali para “ser um porta-voz do governo, buscando um lado positivo de um assunto que não tem nenhum”, completa Léo Arcoverde. Existem outros esforços para impedir o funcionamento da LAI por parte dos políticos. O jornalista Luiz Fernando Toledo publicou em novembro de 2017 as tentativas da gestão do atual prefeito da cidade de São Paulo, João Doria, de impedir que jornalistas consigam acessar informações através da Lei de Acesso. De acordo com a gravação oficial da reunião da Comissão Municipal de Acesso à Informação, Lucas Tavares, chefe do gabinete da Secretaria Especial de Comunicação, disse que iria dificultar o acesso das informações obtidas pela lei para os jornalistas através de vias legais. Após a divulgação da gravação pelo Estadão, o assessor foi demitido e está sendo investigado pelo Ministério Público. A Lei de Acesso oferece um caminho direto, capacitando assim a quebra do monopólio de dados para a fiscalização e o funcionamento adequado da democracia representativa. * Reportagem originalmente publicada na Revista Cásper, edição 23, publicada em 5 de fevereiro de 2018.Quer fazer parte da batalha pela transparência pública?
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