Só 1,8% dos casos de abuso sexual nos trens em São Paulo é registrado como estupro. Foto: Paulo Pinto/ AGPT (08/06/2016)
Houve ou não estupro? A polêmica que dividiu parte da Polícia Civil fluminense a ponto de o delegado responsável inicialmente pela investigação do estupro coletivo de um adolescente de 16 anos em uma favela da zona oeste do Rio ter sido afastado do caso fez provocou um debate acerca da caracterização desse crime hediondo.
Afinal, o que é estupro?
Desde agosto de 2009, quando os crimes contra a dignidade sexual foram reformados pela lei resultante da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Pedofilia, estupro é “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Antes de essa lei entrar em vigor, estupro era “constranger
mulher, mediante violência ou grave ameaça, à
conjunção carnal”.
Isso significa dizer que só a partir de 2009 a lei confere a possibilidade de um estupro tendo um homem como vítima. E mais: ele não se dá apenas com a conjunção carnal, mas sim com a prática de qualquer ato libidinoso, ou seja, qualquer ato que propicie o prazer sexual.
Questões legais à parte, o
Fiquem Sabendo fez um levantamento, com base em dados oficiais, para saber como a polícia em São Paulo aplica essa lei. A reportagem analisou 667 registros de ocorrências feitos pela Delpom (Delegacia de Polícia do Metropolitano), responsável por investigar os casos de abuso sexual ocorridos nos trens e nas estações do metrô e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), entre janeiro de 2011 e maio de 2016.
A estatística não deixa dúvida: apesar de a lei estipular “qualquer ato libidinoso” como estupro, só 1,8% dos casos de abuso sexual denunciados são registrados pela Polícia Civil como estupro. Isso representa um total de 12 boletins de ocorrência.
Outros 24 casos foram registrados como violação sexual mediante fraude. A grande maioria, contudo, representada por 631 ocorrências, foi classificada pela polícia como importunação ofensiva ao pudor, que não é definida pela lei como crime, e sim como uma contravenção penal. (Veja, no infográfico abaixo, o que significa cada um desses crimes.)
Falta de punição requer criação de novo crime, diz jurista
Na avaliação do jurista e professor de direito penal
Luiz Flávio Gomes, isso só ocorre porque a lei brasileira não prevê um crime intermediário entre a importunação e o estupro.
A análise foi feita quando o site publicou, em março deste ano, uma reportagem sobre esse assunto.
“Pela lei, a importunação ofensiva ao pudor pressupõe que não haja toque físico. Um exemplo disso é a situação em que o homem chama a mulher de bunduda, gostosa ou qualquer outra forma que a ofenda”, diz Gomes. “Havendo toque físico, qualquer que seja ele, é estupro.”
De acordo com o jurista, o fato de o estupro ter uma pena muito alta faz com que a polícia e o próprio Poder Judiciário classifiquem os casos de abuso sexual de outras formas. Assim, eles evitam que as “encoxadas” praticadas no transporte público sejam punidas como estupro.
“Deveria ser criado o crime molestamento sexual, com pena de dois a seis anos, como está previsto na reforma do Código Penal, em tramitação no Senado. Como ele ainda não existe, as autoridades hoje ‘forçam a barra’, enquadrando casos de abuso sexual como violação sexual mediante fraude e importunação, quando não o são.”
Pela lei, diz Gomes, a violação sexual mediante fraude se aplica a casos em que o suspeito mente para a vítima, passando-se por outra pessoa, para levá-la a fazer sexo ou praticar outro ato libidinoso com ele, por exemplo. “Não vejo como isso pode ocorrer no transporte público.”
527 mil mulheres são estupradas por ano no Brasil
De acordo com o estudo
Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), do governo federal, cerca de 527 mil mulheres são estupradas por ano em todo o país.
Segundo a pesquisa (a mais aprofundada já realizada sobre o tema no Brasil), apenas 10% desses casos chegam à polícia.
Os dados utilizados nesse estudo apontam que “89% das vítimas são do sexo feminino e possuem, em geral, baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes”.