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Uma lei que protege dados pessoais e outra cujo objetivo é publicizar informações do poder público. Após ao menos uma década de debates, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) entrou em vigor neste último mês de setembro após sanção presidencial. De empresas privadas ao setor público, ela busca garantir a segurança e a privacidade dos dados dos cidadãos. Já a Lei de Acesso à Informação (LAI), funcionando desde 2011, foi responsável por inegáveis avanços na transparência pública.
Assim, o Brasil está perto de seguir o molde de diversos países desenvolvidos e ter uma lei de proteção de dados e de transparência atuando paralelamente. Na teoria, não há embate direto entre elas. Ambas têm o mesmo peso dentro da estrutura legislativa e a LGPD não se sobrepõe à LAI nos pontos em que ambas legislam. Apesar das funções distintas, podem existir alguns pontos de embate entre as legislações, dizem especialistas ouvidos pela agência Fiquem Sabendo.
“A sociedade civil precisará ficar atenta para que órgãos não usem a LGPD como um novo argumento para restringir informações que deveriam ser públicas”, diz Gustavo Ungaro, professor de Direito na Uninove e controlador-geral da cidade de São Paulo até abril deste ano. Listamos, abaixo, cinco pontos em que LGPD e LAI se relacionam — e em quais desses pontos podem haver divergências.
Quando a LAI entrou em vigor há quase uma década, não havia na legislação brasileira uma definição clara de dados pessoais. A LAI, então, antes de dizer que boa parte dos dados pessoais eram sigilosos e não estavam passivos de publicização por meio de pedidos de acesso à informação, precisou, primeiro, defini-los. E usou para isso um “puxadinho” em seu artigo 31, em que acabou por incluir na legislação brasileira uma definição inicial dos usos possíveis do dado pessoal.
A LGPD, agora, vem para expandir essa lacuna e trazer uma definição mais detalhada. “A definição do que é dado pessoal em nosso país quem aprimorou foi a LAI. A LGPD só repetiu isso”, diz Danilo Doneda, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e um dos participantes da sociedade civil na construção da LGPD.
Doneda acredita que, por esse ângulo, a LGPD pode ser positiva ao acesso à informação. “Com a definição do que é dado pessoal expandida, na teoria diminuem os argumentos de quem tenta colocar informação pública na categoria de sigilo”, diz.
Ao dar ao cidadão direito sobre seus dados, a LGPD também pode aumentar a transparência pública no que diz respeito à coleta e análise de dados. “Para além das empresas privadas, também na esfera pública terá de ficar mais claro por parte do Estado como se lida com dados do cidadão”, diz Eduardo Tomasevicius Filho, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
O professor cita uma ação contra o Metrô, aberta pela defensoria pública da União, exigindo que a empresa estatal entregasse toda a documentação sobre como pretende fazer o reconhecimento facial do cidadão que circula por suas plataformas. “A LGPD dá força a processos desse tipo. Pela LAI, você só sabe que dados são armazenados. Pela LGPD, o Estado terá de dar transparência ao uso que fazem desses dados, se compartilham com outros órgãos”, diz.
A LGPD e LAI podem ser lidas como duas faces da mesma moeda. A LAI garante transparência ao que deve ser público; a LGPD, proteção para o que é da esfera privada da vida dos cidadãos. Mas um dos principais desafios que já ocorreram na implementação da LAI pode ganhar força com a LGPD: a negativa de acesso a dados públicos quando envolvem informações de servidores.
As negativas sob motivos pouco claros já acontecem, mesmo sem a LGPD. Relatório da Transparência Brasil mostra que o uso de justificativas tidas como “controversas” pelo Executivo federal para negar pedidos via LAI aumentaram em até quatro vezes entre janeiro de 2019 e junho de 2020, desde o começo do governo do presidente Jair Bolsonaro. Foi a menor concessão de acesso da história da LAI no período. Temos como "trabalho adicional", "pedido genérico" e "desproporcional" foram usados em 40% das negativas.
Houve ainda aumento do uso de "dados pessoais" como justificativa nas respostas: no primeiro ano de mandato de Bolsonaro, essa justificativa foi usada em 20% dos pedidos negados, quatro vezes mais do que nos governos Dilma Rouseff (2011-16) e Michel Temer (2016-18). O temor é que a LGPD dê novo embasamento a esse tipo de justificativa.
No limite, pode haver uma série de casos em que a LGPD seja usada como argumento, ainda que de forma controversa. Manoel Galdino, diretor da Transparência Brasil, aponta como exemplos a possibilidade de serem dificultados os acessos a dados de filiação partidária e de movimentações de servidores públicos. Os próprios dados que levaram à investigação do esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro envolvem amplas informações pessoais de servidores, como salários, e não está claro como será o acesso a esses dados a jornalistas ou a sociedade civil.
“Tem um potencial de intersecção com a LAI que não foi muito bem discutido”, diz. Ungaro, da Uninove, também vê como outra ameaça o acesso a contratos de empresas estatais, com a afirmação de que há nomes de servidores envolvidos. Na teoria, bastaria ocultar os nomes dos servidores, mas a LGPD pode trazer novo debate.
A LGPD surgiu sobretudo como forma de proteger os cidadãos de usos pouco transparentes de seus dados pessoais por parte de empresas privadas. Embora fosse discutida antes disso, a lei ganha especial relevância após episódios como os da Cambridge Analytica, quando dados de usuários do Facebook foram usados por terceiros para influenciar a eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016.
Mas os pontos de conflito explicitados — como os dados de servidores — deixam claros os desafios pela frente. Para alguns dos especialistas ouvidos, a lei pecou ao não estabelecer muitos detalhes para o setor público. "A LGPD foi muito pensada para o setor privado, mas tem um componente que se aplica ao setor público e, nessa esfera, não foi pensado o impacto na relação com a transparência", diz Galdino, da Transparência Brasil.
A LGPD já estabelece que, caso dados sejam importantes para políticas públicas, não é necessário o consentimento do titular. "Mas não existe nada especial na LGPD que diferencie o direito a dados de um servidor e de um cidadão que não está ligado ao Estado.”
Para Bruna Martins dos Santos, esse tipo de dificuldade vai muito além de potenciais conflitos da LGPD. “Não diria que a LGPD tem um impacto negativo na LAI. Mas também é um risco ver o governo instrumentalizando a negativa de acesso quando ela não existe, e isso independe da LGPD”, diz.
Na outra ponta, Santos avalia que há uma possibilidade de que o preparo dos órgãos para atender à LAI seja até mesmo ampliado com a LGPD à medida em que o Estado, um dos agentes com maior quantidade de dados pessoais sob sua égide, terá de organizar e cuidar melhor das informações a que tem acesso.
Um dos cenários é que haja uma maior transparência ativa — quando os órgãos disponibilizam os dados antes mesmo de receberem um pedido sobre isso. Pedidos de acesso outrora negados porque bases de dados estavam desorganizadas (de tal forma que havia uma individualização dos envolvidos) também podem já estar “à mão” se os órgãos se adaptarem às regras da LGPD previamente.
DICA: Assista ao episódio "Uma conversa com Claudio W. Abramo sobre proteção de dados pessoais", do podcast Caixa-Preta, produzido pelo Volt Data Lab.
É quase impossível, no texto de uma lei, esgotar todos os debates e situações que podem decorrer dela. No caso da LAI, a jurisprudência já construída em torno do acesso à informação na última década ajuda contra potenciais conflitos. Mas a chegada de uma nova lei no cenário jurídico pode fazer com que alguns pedidos sejam colocados em xeque.
A questão clássica, que é o pedido via LAI para acesso a salários de servidores, já foi resguardada por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, o que a torna menos vulnerável. Na decisão, de 2012, os ministros do STF concluíram que "os dados objeto de divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos" e que a publicidade dos salários é "o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano". Mas o temor é que a LGPD seja usada como argumento para pedir uma nova interpretação desses temas, sobretudo os que não foram alvo de decisões do STF.
A própria história recente mostra que cada fato novo abre possibilidades para discussão. Isso aconteceu com a própria LAI diante coronavírus: neste ano, a Medida Provisória 928/2020 do governo do presidente Jair Bolsonaro suspendia prazos de pedidos via LAI diante da pandemia e impedia recursos nesses casos. A medida foi declarada como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Assim, novos embates podem seguir acontecendo, sobretudo nos primeiros anos de vigência da LGPD. O ideal é que a própria regulamentação da LGPD que está por vir traga em seu texto o “antídoto” para parte das discussões que estão por vir, diz Ungaro, da Uninove.
“Seria importante ressaltar já na regulamentação que salário individualizado, contrato na íntegra e outras informações de servidores sejam tratadas de forma a não prejudicar a transparência e não permitir que a LGPD sirva de pretexto contra a LAI”, diz.
Caso os piores prognósticos se cumpram e a LGPD seja usada, ainda que incorretamente, para barrar a LAI, quem será o responsável por decidir sobre as discussões?
Um órgão chave para fazer com que a LGPD seja um sucesso no Brasil é a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, criada oficialmente no fim de agosto com a aprovação da LGPD no Congresso. Como guardiã da LGPD, à ANPD caberá também garantir que a LAI não seja implicada no processo de aumentar a proteção de dados no Brasil.
“O grande desafio hoje é como as autoridades públicas, principalmente a ANPD, vão ser capazes de fornecer diretrizes para esse tratamento. Como a LGPD vai se conectar e se harmonizar com essa modulação da LAI”, diz
Ana Claudia Farranha, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e pesquisadora em Direito e gestão pública.
Como já ocorreu com alguns casos da LAI, como os próprios pedidos relativos a salário, potenciais embates podem ir além das controladorias, ouvidorias e ANPD e ir parar em tribunais e no STF. A jurisprudência será construída ao longo do tempo. Mas o ideal, na visão dos especialistas, é sempre ter um arcabouço que evite esse nível de judicialização para não atrapalhar os prazos da LAI e a aplicação da lei.
Outro desafio será nos estados e municípios, onde a LAI até hoje sofre para se fazer cumprir e onde faltam controladorias e fiscalização. O problema localmente, com alto número de negativas ou mesmo temor dos servidores em fornecer dados que podem colidir com a LGPD, pode ser maior caso não haja uma regulamentação adequada. Outro ponto ainda pouco claro é qual órgão vai decidir no dia-dia sobre casos relativos à LGPD em estados e municípios sem controladoria, onde a LAI fica a cargo de ouvidorias hoje.
Ainda não se sabe se os mesmos servidores que hoje cuidam da LAI nas ouvidorias e corregedorias dos municípios supervisionarão também casos relativos à LGPD — o que seria ideal do ponto de vista da celeridade. Na cidade de São Paulo, um decreto foi publicado neste mês de setembro regulamentando pontos da LGPD. Pela regra, a aplicação da lei vai ficar com a Controladoria Geral do Município, que já cuida da LAI, o que pode ser positivo para evitar conflitos. O governo do Estado de São Paulo também criou um grupo de trabalho sobre o tema.
Entre todos os especialistas, há um consenso: os primeiros anos de LGPD precisam ser atentamente acompanhados pelas instituições e pela sociedade civil, incluindo em sua relação com a transparência pública e a LAI. “O fato de termos negativas de pedidos aumentando nos últimos meses mostram que o problema não é necessariamente a LGPD, mas a necessidade de que a sociedade e as instituições estejam vigilante para que as regras sejam cumpridas”, diz Doneda.
Assista entrevistas com especialistas que realizamos com apoio do ICFJ:
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Este conteúdo saiu primeiro na edição #66 da newsletter da Fiquem Sabendo, a Don’t LAI to me. A newsletter é gratuita e enviada quinzenalmente, às segundas-feiras. Clique aqui e inscreva-se para receber nossas descobertas em primeira mão também.