Manifestante exibe cartaz em protesto contra a cultura do estupro na avenida Paulista, região central de São Paulo. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil (01/06/2016)
O país onde 30% da população culpa a mulher pelo estupro é também o lugar em que autoridades decidiram, consensualmente, que encoxada, humilhação sofrida diariamente por milhares de brasileiras, não é crime.
Este quadro decorre da reforma dos crimes contra a dignidade sexual, em vigor desde agosto de 2009, que revogou o crime de atentado violento ao pudor, que previa uma pena de dois a sete anos de prisão, e transferiu a sua redação para a do delito de estupro.
Desde então, constranger uma mulher, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar qualquer outro ato libidinoso é estupro. Dois crimes viraram um só, com pena prevista é de seis a dez anos de prisão.
Só que o Judiciário não absorveu a mudança na lei: na prática forense, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Os juízes não concordaram com o fato de o legislador ter lhes deixado como única opção a pesada pena de estupro como punição aplicável a quem, por exemplo, encoxa uma passageira no transporte público.
Adotou-se como regra, portanto, aplicar a pena de multa prevista para a contravenção penal importunação ofensiva ao pudor. Na maioria dos casos (quantos encoxadores têm dinheiro para pagar uma multa imposta pela Justiça?), isso é convertido em prestação de serviços à comunidade.
É o
in dubio pro reo que consagra o machismo: exige-se a prestação de serviço à comunidade (uma hora diária pintando uma parede de uma escola pública, por exemplo) de quem, na visão do Judiciário, não merece cumprir, preso, uma pena por estupro.
O resultado prático disso é estarrecedor: só 1,8% dos casos de abuso sexual nos trens do metrô e da CPTM é registrado pela Polícia Civil como estupro, segundo levantamento feito pelo
Fiquem Sabendo com base em dados oficiais obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. De 667 registros dessa natureza feitos entre janeiro de 2011 e abril deste ano, 631 foram considerados importunação ofensiva ao pudor (veja mais detalhes do levantamento no infográfico abaixo).
Transcrevo a opinião do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Guilherme de Souza Nucci, um dos criminalistas mais respeitados do país, tirada de seu “Manual de Direito Penal”: “Vários magistrados expressam a dificuldade de adequar determinadas condutas em estupro, quando poderiam configurar uma mera importunação ofensiva ao pudor. Por outro lado, há situações visivelmente intermediárias, superiores, em gravidade, à contravenção penal, mas inferiores ao crime de estupro. É preciso criar figura intermediária, particularmente voltada a atos libidinosos de menor gravidade, merecedores de punição, mas sem a contundência das penas previstas para o estupro”.
Já passou da hora, portanto, de se criar essa tal figura intermediária e se consertar a besteira que o Congresso fez em 2009.